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Artigo O Globo: ‘Jogo compatível com a doutrina católica’

11/01/2019

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Antonio Luiz Catelan Ferreira e Pedro Trengrouse (*)

Os jogos de azar, ou de fortuna, afinal de contas, se um perde, outro ganha, foram proibidos no Brasil em 1946, sem nenhuma discussão no Congresso, através de um decreto-lei editado pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra, ainda na vigência da Constituição de 1937, extremamente autoritária e base jurídica da ditadura do Estado Novo. A razão principal teria sido influência religiosa de sua mulher, Carmela Teles Leite Dutra, católica fervorosa, também conhecida como Dona Santinha. O paradoxo é que a Igreja Católica, apesar de se preocupar com potenciais efeitos nocivos, não é, nem nunca foi, contrária ao jogo.

Em Portugal, desde 1783, a Santa Casa é operadora e beneficiária do jogo no país. Sua receita anual com apostas supera 3 bilhões de euros. Na Itália, recursos de jogos ajudaram a erguer a Basílica de São Pedro. Nos Estados Unidos, proventos de jogos ajudaram igrejas, escolas e universidades como Harvard, Yale, Princeton e Columbia. No Brasil, a Santa Casa do Rio Grande do Sul recebia recursos de loterias, e muitas obras importantes foram construídas com dinheiro de jogo, como a Santa Casa do Rio de Janeiro e a Igreja do Bonfim, em Salvador. Além disso, muitas igrejas, de diversas religiões, no Brasil e no mundo, organizam bingos, rifas e outros jogos regularmente para as mais diversas finalidades.

O Catecismo da Igreja Católica (n. 2.413) trata claramente do assunto: “Os jogos de azar ou apostas em si não são contrários à justiça. Tornam-se moralmente inaceitáveis quando privam a pessoa daquilo que lhe é necessário para suprir suas necessidades e as dos outros. A paixão pelo jogo corre o risco de se transformar em uma dependência grave. Apostar injustamente ou trapacear nos jogos constitui matéria grave, a menos que o dano infligido seja tão pequeno, que aquele que o sofre não possa razoavelmente considerá-lo significativo”.

Os argumentos religiosos contra o jogo se concentram em seus potenciais efeitos nocivos. Ora, a melhor maneira de controlar, mitigar e evitar estes possíveis efeitos nocivos não seria através de regulamentação inteligente e eficiente para promoção do jogo responsável, tratamento de pessoas vulneráveis ao vício, defesa da integridade dos resultados, proteção da economia popular e dos apostadores?

No mundo, estima-se entre 0,2% e 3% o número de pessoas propensas a algum distúrbio relacionado a jogo. No Brasil, o movimento anual de jogos, regulados e não regulados, supera R$ 50 bilhões — títulos de capitalização, 44%; loterias federais, 30%; loterias estaduais, 0,7%; turfe, 0,6%; apostas esportivas, 8%; jogo do bicho, 6%; cassinos, 6%; e bingos, 4,7%. A omissão das autoridades e a ausência de regulamentação apropriada abrem espaço para a proliferação do jogo ilegal, que corre solto no país, nas mãos do crime organizado, sites offshore e com efeitos nocivos muito piores.

Na prática, quem é contra o jogo legal é a favor do jogo ilegal. O Brasil não pode continuar sem políticas públicas adequadas para o desenvolvimento do jogo com a devida rede de proteção social e regulação eficiente que permita que o jogo responsável alcance seu pleno potencial de geração de emprego e renda no país, sem perder de vista as legítimas preocupações religiosas, que são sobretudo humanas e sociais.

(*) Pedro Trengrouse é professor da FGV e certificado em regulação de cassinos pela Universidade de Nevada Las Vegas, e Antonio Luiz Catelan Ferreira é monsenhor, membro da Comissão Teológica Internacional e professor de Teologia da PUC-Rio. O artigo acima foi veiculado na editoria de Opinião do O Globo.