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Bingo – uma questão de saúde pública.

10/03/2004

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Estados vêm enfrentando dificuldades em razão da queda de arrecadação. Curiosamente, a renda proveniente de jogos de azar, aí incluídas as loterias, aumenta. Alguns autores norte-americanos afirmam que hoje os governantes estão dependentes do jogo, ou, pelo menos, do dinheiro que ele gera. Chama a atenção na atual discussão sobre os bingos o fato de ninguém mencionar a fonte dos recursos: o cidadão que, ao apostar, acredita estar investindo na única possibilidade, em curto prazo, de resolver seus problemas. Não é possível afirmar, como querem alguns, que essa atividade seja simplesmente uma forma de lazer em que as pessoas gastam dinheiro sobressalente, sem nenhum prejuízo. Na verdade, empregam sua renda e, freqüentemente, suas economias, na ilusão de serem agraciadas com prêmio milionário. Deixa-se de considerar que os jogos de azar podem provocar quadro similar ao da dependência de drogas psicotrópicas. A recompensa que vem a qualquer momento reforça o comportamento do indivíduo, fazendo com que continue apostando na esperança de ganhar ou de recuperar o que perdeu em apostas anteriores. Quanto mais rápida a recompensa, maior o poder aditivo do jogo. Assim, fica claro o porquê do tempo mínimo de intervalo entre rodadas em bingos e o fascínio das máquinas eletrônicas, que, além de serem rápidas, hipnotizam com suas luzes e sons. Cria-se um ambiente para distrair e o indivíduo gasta parte considerável de seu orçamento sem notar. Casas de jogo deveriam informar a chance de ganhar em cada tipo de jogo, além de alertar sobre os riscos do jogo patológico e divulgar endereços para tratamento. No entanto, fazem o inverso. São decoradas de maneira a convidar o indivíduo a perder a noção do tempo em que ali permanece. Imersos em ambiente agradável, muitos esquecem os problemas do cotidiano e, se o dinheiro acaba, não faltam oportunidades para trocar cheques ou obter crédito. Apesar de a maioria jogar por lazer, jogadores compulsivos são grandes financiadores da atividade, pois perdem o controle e ultrapassam seus limites. Entretanto, pouco se fala de jogo patológico e das conseqüências familiares, econômicas e sociais dele decorrentes. Não há propostas de conscientização da população para os riscos do jogo patológico, de treinamento para profissionais reconhecerem os sintomas e diagnosticarem o transtorno, tampouco de financiamento para tratamento ou pesquisas. Jogo patológico foi incluído na classificação diagnóstica internacional de doenças mentais em 1980 como transtorno impulsivo e vem sendo considerado um problema de saúde pública desde o início da década de 1990. Diversos países legalizaram loterias e diferentes tipos de jogos de azar e pesquisas mostram o aumento simultâneo da prevalência de jogo patológico na população. Nos Estados Unidos e no Canadá, a prevalência de problemas associados ao jogo é, em média, de 5,5 % entre adultos e 13% entre adolescentes. Na população idosa americana, esse índice chega a 16% na Flórida. Idosos constituem uma população vulnerável, uma vez que, freqüentemente, estão aposentados e apresentam baixa auto-estima. Dependentes de drogas têm índices superiores de jogo patológico, variando de 5% a 33%. Danos financeiros, legais, médicos e psicológicos relacionados ao jogo patológico estão documentados na literatura. Sabe-se que jogadores patológicos cometem atos ilegais para sustentar o jogo, tendem a apresentar problemas cardíacos e gastrointestinais, perturbações de sono, dores de cabeça e sofrem condições psiquiátricas associadas, tais como abuso de álcool e outras drogas, transtorno obsessivo-compulsivo, de ansiedade e de humor. Depressão associada a jogo patológico é comum, sendo alto o risco de suicídio. No passado, o perfil do jogador norte-americano era o adulto de 45 a 50 anos, branco, com dinheiro suficiente para ir a Las Vegas jogar. Atualmente, é o cidadão comum, incluindo idosos, mulheres e adolescentes de todas as classes econômicas. No Brasil, o perfil do jogador parece semelhante ao americano, havendo claros indícios de que o número de jogadores patológicos vem crescendo conforme aumenta a disponibilidade de jogos. Em 1994, logo após a abertura de bingos, foi criado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) o primeiro programa de tratamento especializado em jogo patológico no País. Nestes dez anos de atividade, a procura por tratamento tem sido muito maior do que a possibilidade de atendimento, dada a falta de recursos. Observou-se que os jogos referidos como desencadeadores do problema acompanharam a oferta do mercado. Os primeiros pacientes jogavam videopôquer em casas de diversões eletrônicas. Posteriormente, passaram a ser jogadores de bingo e de jogos eletrônicos. Um quarto desses jogadores já cometeu ato ilícito relacionado ao jogo, 78% estavam endividados, 47% já pensaram em suicídio e 14% já haviam feito ao menos uma tentativa de suicídio. Assim, não se pode afirmar que essa atividade seja inócua ou inofensiva. No entanto, tenta-se promover o bingo como uma atividade de lazer, beneficente, que não faz mal, e se procura desvincular a imagem do bingo como jogo de azar. Pesquisa realizada na Universidade de São Paulo (USP) em 1997 mostrou que jogadores classificados como patológicos, entrevistados em bingos, se sentiam menos culpados pela atividade de jogar do que os pesquisados em casas de videopôquer ou no Jóquei Clube. Todos preenchiam critérios para jogo patológico e sofriam conseqüências desse transtorno. A maioria dos jogadores patológicos não tem consciência do problema e não pensa em pedir ajuda. Eles escondem seu envolvimento com jogo até que as conseqüências os denunciem. Estudos mostram que os gastos associados ao jogo podem ser superiores à receita dele proveniente. A estimativa é de que cada jogador patológico custe à sociedade norte-americana de US$ 13 mil a US$ 52 mil. Assim, na discussão sobre legalização ou não de bingos, o governo deve considerar a complexidade do tema, avaliando custos diretos, como perda de produtividade, de emprego e despesas com tratamento de jogadores patológicos, além de indiretos, advindos de gastos com processos, prisão e inadimplência. Se optar pela regulamentação, deveria circunscrever o jogo de maneira clara e restrita, de forma que o jogador saiba que vai apostar num jogo de azar, como acontece quando vai ao Jóquei ou a um cassino, além de destinar porcentagem da renda arrecadada para financiar pesquisas, tratamento e prevenção de jogo patológico. (*) Maria Paula de Magalhães Tavares de Oliveira, mestre e doutoranda em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, fundadora do Ambulatório de Jogo Patológico do Programa de Orientação a Dependentes da Unifesp E-mail: mpm_fto@uol.com.br Estadão